sexta-feira, 18 de abril de 2008

Conceitos Teatrais - Conceito de Acção Dramática

Este texto não é um ensaio, e muito menos um estudo. Trata-se simplesmente de algumas anotações sobre a questão da acção dramática. O seu objectivo é, antes apontar direcções para futuros estudos, do que fazer uma reflexão completa e exaustiva sobre esse tema.

Muitos de nossos actores não compreendem adequadamente o que seja uma acção dramática. De facto, tenho constatado esse equívoco na maior parte dos espectáculos a que tenho assistido nos últimos anos, e até mesmo em escolas de Arte Dramática. E se na cena propriamente dita, muitas vezes não encontramos sequer um vestígio de acção dramática, os debates realizados nos Festivais e Mostras indicam que o seu próprio conceito é frequentemente confuso e indeterminado, então não temos nenhuma ideia do que seja acção, não há a menor possibilidade de encontrarmos sua realidade em cena.

Essa falta de clareza conceptual faz com que a palavra "acção" surja no discurso de muitos com uma certa atmosfera "mística", como se sua presença dependesse de outras realidades também mistificadas como "inspiração", "talento", "eleição", e então é preciso descartar definitivamente a ideia romântica de que o artista é um favorito das musas, um escolhido dos deuses, tendo por tarefa e "missão" ofertar ao mundo os frutos de seu génio. A obra de arte é resultado de muito esforço, trabalho e dedicação. Einstein dizia que era necessário “2% de inspiração e 98% de transpiração”.

Esforço e trabalho, entretanto, por mais necessários e indispensáveis, não bastam, é preciso técnica, quer dizer, é preciso saber o quê e como fazer. No caso do actor: saber o que é acção e como agir em cena.

Diz Aristóteles que a tragédia (e podemos estender isto a todo género teatral) não é principalmente imitação de homens, mas de acções e de vida. "O mito (a trama dos acontecimentos e das diversas acções), continua o filósofo, é o princípio e como que a alma da tragédia." (1)

A acção portanto é a matéria básica do teatro e também do trabalho do actor. E podemos definir acção como todo e qualquer movimento (não necessariamente físico) que é fruto de uma vontade, e que visa um determinado objectivo (visualizado pela inteligência). Nem todo o movimento realizado pelo homem é uma acção. Para que o seja, é necessário que esse movimento resulte de um querer alcançar um determinado objectivo conhecido pelo sujeito, ou ter um pensamento subjacente.

A acção humana tem uma raiz imaterial; origina-se naquilo que há de mais alto e nobre no homem, no que tradicionalmente denomina-se de "espírito": vontade e inteligência. A vontade quer alcançar um bem que é conhecido pela inteligência. Notemos que esse bem é percebido pelo sujeito como algo que lhe falta, algo que, se possuído, lhe trará certa felicidade.

Assim, a acção tem um carácter transcendente. Não é realizada por si mesma, mas como um meio que visa alcançar determinado fim. Se não considerarmos essa transcendência, o conceito de acção torna-se incompreensível.

Como dizia Hegel, falando especificamente de dramaturgia, a acção dramática "é a vontade humana que persegue seus objectivos, consciente do resultado final". (2) Romeu, apaixonado por Julieta, quer unir-se a ela, fazer dela sua esposa; Macbeth quer ser o rei da Escócia; Hamlet quer vingar o assassinato de seu pai, restabelecer a justiça no reino da Dinamarca. Tudo o que essas personagens fazem em sua trajectória dramática, relaciona-se com seus respectivos objectivos (e, secundariamente, com seu caracter). Romeu, por exemplo, invade o jardim do palácio dos Capuleto, declara-se a Julieta, tem uma entrevista com Frei Lourenço pedindo a sua intercedência, pede a Julieta (através de sua ama) que vá "confessar-se" com Frei Lourenço. Hamlet finge estar louco, utiliza-se da trupe de actores para confirmar o assassinato de seu pai, agride Ofélia (para se livrar-se do impedimento que o seu próprio amor representa), mata o espião que se esconde atrás da cortina do quarto de sua mãe...

Creio que o exposto acima basta para que se tenha uma ideia clara sobre o conceito de acção em dramaturgia. (3) Não é suficiente, entretanto, para que compreendamos o papel da acção como matéria para o trabalho do actor, é provável que muitos dos espectáculos de algumas Mostras de Teatro apontemos uma ausência de acção, sejam obra de actores e directores que já têm, com maior ou menor clareza, esse conceito de acção. Acontece que tal compreensão intelectual, por mais indispensável que seja, não é suficiente para abordarmos a construção de uma cena, é preciso que saibamos também como essa mesma dialéctica entre vontade e finalidade se encarna no trabalho do actor.

Ao falarmos da acção do actor em cena, o discurso torna-se necessariamente mais denso e mesmo mais obscuro, pois trata-se agora de uma realidade concreta, que não pode ser esgotada pela análise pura e simples, e exige do leitor a experiência dessa mesma realidade, tanto no teatro, como na vida. Em virtude do caracter episódico deste texto, posso apenas indicar alguns pontos que deverão ser pesquisados, desenvolvidos e completados pelo leitor.

Em primeiro lugar, tudo o que o actor faz em cena deve ser acção, ou seja, em tudo que ele faz estão envolvidas as faculdades vontade e inteligência. O homem, porém, não possui apenas essas faculdades; ele também tem memória, imaginação, sentidos. Cada uma dessas operações corresponde a uma ordem de ser: o homem é espírito (vontade e inteligência), alma (memória/imaginação) e corpo (sentidos). Essas ordens entretanto não são compartimentos estanques, isolados, mas integram-se todas em uma totalidade. Quando eu digo, portanto, que tudo o que o actor faz em cena deve ser acção, quero dizer que em tudo o que ele faz deve haver uma integração dessas várias faculdades, com a particularidade de que o foco para onde elas convergem é o corpo do actor.

Isto é naturalmente assim. O que acontece na alma de um homem tem ressonâncias em seu corpo, de maneira que, quando vejo alguém faço intuitivamente uma leitura das tensões e moções que inscrevem-se em seu corpo e, assim, tenho uma ideia mais ou menos clara do que se passa em sua alma. Todos nós temos essa experiência, especialmente quanto às pessoas que nos são mais próximas.

Agora, no caso do actor, essas tensões e moções físicas devem ser visíveis, e portanto é preciso que sejam como que aumentadas, amplificadas, resultando em um nível de energia e de esforço bem maior do que os utilizados no nosso dia a dia.

Todo pensamento, todo movimento feito em cena que não seja uma acção dramática interfere na escritura cénica e é lido pelo público, mesmo que este não tenha consciência clara dessa leitura. Todo pensamento e todo ato inscrevem-se no corpo do actor; se, ao lado da sequência de acções dramáticas desenvolvida pelo actor, houver uma variedade de pensamentos e movimentos que nada têm a ver com a cena, o resultado disto assemelha-se a um desenho cheio de borrões e de linhas absurdas e inúteis, a ponto de o espectador ficar completamente confuso, sem saber o quê deve ser lido e muitas vezes sem ter nenhuma indicação de para onde deve dirigir sua atenção.

Esta é uma descrição paroxistica, porque de fato o que geralmente acontece é um desenho bastante incompleto, uma linha aqui, uma mancha acolá, sem unidade e integridade. Acontece uma acção agora, outra mais tarde, e entre elas alguns momentos de simples actividade, de movimentos gratuitos, de tentativas de "expressar sentimentos", ou mesmo de pura ausência.

Um outro ponto a assinalar é a crença extremamente difundida entre os nossos actores de que a interpretação teatral é construída sobre os sentimentos, como se fosse possível manipular directamente as nossas emoções. Isto é um engano e leva a uma interpretação mentirosa e cheia de clichés. Os sentimentos e emoções são sempre resultado da acção do actor sobre seu próprio corpo, da manipulação da energia, da distribuição das tensões musculares, do movimento interno (muscular, nervoso) que resulta do foco da vontade sobre um determinado objectivo ficcional.

Essa ideia de que a matéria do actor são os seus sentimentos deve-se a uma leitura equivocada da obra de Stanislavski. Os capítulos 2 e 3 de A Preparação do Actor são uma obra-prima na descrição dos principais erros que os actores cometem em cena e na definição da acção física como matéria fundamental para o actor. Limito-me aqui a citar a passagem em que o mestre russo fala mais especificamente sobre a questão que vimos tratando (o sentimento).

"Em cena, diz o director Tórtsov depois de um mau sucedido teste de seus alunos, não corram por correr, nem sofram por sofrer. Não atuem de um modo geral, pela acção simplesmente, atuem sempre com um objectivo." E logo depois da explanação, numa cabriola pedagógica, ordena aos actores: "E agora subam ao palco e façam!"

Os alunos vão para o palco e imediatamente incorrem nos dois erros básicos cometidos pelos actores: buscam ou "ser a personagem" ou "sentir as emoções da personagem". Terminado o exercício, Tórtsov chama três actores: "Sentem-se aqui mesmo nestas cadeiras, onde posso vê-los melhor, e comecem: você vai sentir ciúmes, você vai sofrer e você entristecer-se, apenas expondo esses estados de alma, simplesmente por eles mesmos." E Kóstia, o aluno/narrador, conta: "Sentamo-nos e logo percebemos como era absurda a nossa situação. Enquanto eu andava de um lado para o outro, retorcendo-me como um selvagem, era possível acreditar que havia algum sentido naquilo que eu fazia, mas quando me sentaram numa cadeira, sem nenhum movimento exterior, patenteou-se o absurdo da minha interpretação."

"Bem, o que é que vocês acham? perguntou o Director. - é possível alguém sentar-se numa cadeira e, sem nenhum motivo, ter ciúmes? Ou ficar todo emocionado? Ou triste? Claro que é impossível. Fixem esta regra de uma vez por todas em suas memórias: em cena não pode haver, em circunstância alguma, qualquer acção cujo objectivo imediato seja o de despertar um sentimento qualquer por ele mesmo. (...) Quando escolherem algum tipo de acção, deixem em paz o sentimento e o conteúdo espiritual. Nunca procurem ficar ciumentos, amar ou sofrer, apenas por ter ciúme, amar ou sofrer." (4)

É bem verdade que algumas expressões usadas por Stanislavski podem dar lugar a equívocos. E isto, não só em razão de uma formulação inadequada de seu pensamento, mas também porque o seu "sistema" estava em constante evolução, e afirmações que lemos no seu livro “A Preparação do Actor”, surgem reformuladas, ampliadas e algumas até mesmo negadas em obras posteriores.

Em resumo, podemos aplicar uma regra fundamental da escritura dramatúrgica ao trabalho do actor: "a personagem não deve dizer quem e como ela é; isto é revelado através do que ela faz e das situações que ela vive em cena." Se há uma acção concreta e adequada em cena, o público saberá descodificar e compreender o que se passa nas “almas” das personagens.

Muitas vezes, ao invés de agir, queremos "significar", fingimos que estamos a sentir ou a fazer alguma coisa, e para retratarmos este “significar” usamos movimentos aleatórios, respirações e, quando não chegamos aos clichés, e às micagens mais óbvias; em outras palavras, em vez de fazer, mostramos que estamos a fazer. Nos dois capítulos acima citados, poderão encontrar vários exemplos desse erro.

Para finalizar, vejamos um exemplo de uma sequência de acções em "Romeu e Julieta". Tomemos o início da cena II do segundo acto (a famosa cena do Balcão). Na mesma noite em que conheceu Julieta, Romeu dirige-se ao palácio dos Capuleto e penetra em seu jardim. Quer rever Julieta e, se possível, falar-lhe. Fiquemos apenas com esse momento, a entrada de Romeu e sua deslocação até as proximidades do palácio, e imaginemos algumas formas de abordar essa cena.

1. Raciocinemos em termos realistas. Dissemos mais acima que Romeu quer unir-se a Julieta; poderíamos denominar este objectivo da personagem de "objectivo final". Ela entretanto precisará realizar outros objectivos mais específicos, que representam meios que conduzem ao objectivo final. Para abordar a cena que estudamos, portanto, não basta ter em vista apenas o objectivo final. Isto fatalmente falsearia a interpretação. Um actor que entrasse em cena querendo "unir-se a Julieta" simplesmente não saberia o que fazer, e provavelmente deslizaria para um objectivo falso (mostrar-nos os sentimentos da personagem, por exemplo). Ele pode então escolher o objectivo específico "rever Julieta" (alcançado este, o novo objectivo poderá ser "falar com ela", e assim por diante). Agora, ao entrar em cena, Romeu não sabe onde está sua amada; para revê-la, é preciso antes localizá-la. E mais, ele encontra-se em terreno inimigo. Há um objectivo anterior a encontrar Julieta, que é não ser visto. Romeu não pode fazer nenhum ruído. O actor então entraria em cena tendo em mente o objectivo principal de rever Julieta, deslocando-se com todo o cuidado a fim de não ser visto (e também porque é noite, e o terreno lhe é desconhecido). Mesmo que o palco esteja vazio, ele precisa saber se o terreno em que pisa é relva, areia, pedra, etc., pois as sensações que se tem ao pisar esses vários tipos de terreno são diferentes, bem como a maneira com que o corpo desloca-se aos percorrê-los. Ele também pode definir o que a personagem ouve ao longo do trajecto (seus próprios passos, um pássaro, vozes no interior do palácio - de quem? -, uma fonte), que cheiros percebe... As possibilidades são inumeráveis. Note-se que todos esses detalhes imaginários servem para a construção da cena; não há nenhuma necessidade de que sejam percebidos e descodificados pelo público. O importante é que o actor esteja envolvido com uma sequência definida de pequenas acções que o conduzirão até o momento em que verá Julieta sair ao balcão.

2. A sequência poderá ser abordada de maneira não-realista; através de metáforas, por exemplo. Romeu está apaixonado; poderíamos dizer que ele "está nas nuvens". O actor poderá entrar imaginando que está andando sobre nuvens, e também aqui suas imagens terão que encarnar-se, ou seja, os pés têm que "sentir" a consistência e a temperatura da nuvem, a pele sentirá, digamos, o calor da luz do sol, ele ouvirá a certa altura o ruído distante de um trovão, etc.

3. O actor também poderá definir uma sequência de tensões e micro - movimentos musculares, como uma dança que é realizada no interior do corpo, sem deixar que o público perceba o desenho dessa dança.

Em todo caso, o fundamental é que o actor tenha uma sequência de acções definida (e detalhada) que possa conduzi-lo; que ele saiba a cada momento o que a personagem quer e o que ela está fazendo para alcançar esse objectivo, de maneira que a sua interpretação tenha uma unidade e flua ininterrupta do início ao fim do espectáculo e a este processo devemos delinear um “partitura de acções físicas.

Sugiro que estudem a segunda parte de “A Criação de um Papel”, de Stanislavski, onde o Mestre russo estuda uma montagem da peça Otelo. Saliento que essa maneira de abordar a cena pode ser usada em qualquer linguagem, desde o naturalismo mais radical até o distanciamento brechtiano, ou uma cena clownesca (feitas as necessárias adaptações quanto à gramática da cena). Leiam também o texto de Grotowski sobre a acção dramática em Stanislavski.

Vejam também uma pequena bibliografia básica sobre o trabalho do actor. Em relação à temática da acção que, volto a insistir, é fundamental e arquitetónica para o trabalho do actor, aconselho particularmente a leitura dos livros “A Preparação do Actor”, “A Construção da Personagem” e “A Criação de um Papel”, de Stanislavski, “A Canoa de Papel”, de Eugénio Barba, “Método ou loucura”, de R. Lewis e “Actor e Método”, de E. Kusnet.


Silva Baptista

1 comentário:

Anónimo disse...

O Tozé e o Zétó - Estão muito giros na foto e não penso em faltar a esta peça!

Gosto muito de vocês

Muitos Beijos!!!