terça-feira, 27 de maio de 2008

Um espaço Artístico

Não será demais repetir: O teatro é uma arte que, quando ao serviço da Educação, é um recurso poderoso para o crescimento das crianças, com forte incidência no desenvolvimento sócio-afectivo, emocional, psico-motor e cognitivo.
Por mais paradoxal que possa parecer, não existem muitas situações no contexto escolar que favoreçam um desenvolvimento global, de forma simultânea e eficaz.
Nem o desporto, fortemente integrado na componente curricular, pode suprir esta carência. Ainda que a actividade física seja importante na sua componente social e psicomotora, não valoriza suficientemente o papel da inteligência crítica e emocional, dos sentimentos individuais e da dimensão da ficção na compreensão e definição das respostas a inventar para a vida de cada um. É nestes domínios, que o sistema educativo e até a Educação não formal tem feito menos pelas crianças e jovens.

Contrariando alguns dos "puristas" do jogo espontâneo, arrisco a dizer que mesmo as brincadeiras das crianças no recreio da escola, ainda que fundamentais para o seu desenvolvimento pessoal, são limitadas neste aspecto.

Certamente, todas as formas de arte podem ser fortes aliadas para estimular nas crianças e jovens, o amadurecimento e a afirmação da sua personalidade, servindo como veículo para a expressão das suas ideias e sentimentos. Porque deve ser o teatro privilegiado? Em primeiro lugar, é preciso dizer que a actividade teatral não exclui nem ultrapassa estas outras expressões, cujo valor é inquestionável. Depois, cabe lembrar que nem todos desejam ser actores, ainda que só na vida escolar. Não se pode obrigar ninguém a participar neste tipo de experiência, mesmo sob o pretexto de um desenvolvimento saudável. Assim sendo, o teatro nunca será a tábua de salvação absoluta, para todos os casos e situações. No entanto, o que marca a vantagem na qualidade e na eficácia do jogo teatral perante as outras artes está no instrumento da sua expressão: o ser humano. Utilizando o corpo e a voz como ferramentas para a construção do seu objecto artístico, o actor trabalha de uma forma mais completa as diferentes competências necessárias ao desenvolvimento humano. O sujeito que "brinca aos teatros", devidamente orientado na complexidade formal que este tipo de actividades implica, é colocado em condições onde ele é, por um lado, ele próprio, e, ao mesmo tempo, face à exigência do teatro, obrigado a ser ele mesmo “em melhor”: mais exigente, concentrado, vigilante, compreensivo e – o mais importante – mais sensível. É no jogo dramático que a totalidade do indivíduo está activa e disponível para jogar, e onde o artista encontra o seu espectador de frente, e mostra a sua obra em primeira-mão, numa comunicação directa e única.

Sob a questão da obrigatoriedade que uma disciplina de teatro na escola implica, e contrariamente ao que muitos dos meus colegas e professores possam afirmar, não posso acreditar que o teatro seja explorado na sua plenitude como matéria do currículo escolar. Este não é um assunto que se aprende na escola, mas sim uma experiência integral, que se vive num grupo, de forma espontânea e livre. Fora da rigidez do sistema lectivo, que se rege pelas faltas, notas e deveres, a actividade teatral encontra terreno fértil, cresce e floresce. A responsabilidade de cada um assume, no cumprimento de regras e compromissos necessários à realização do trabalho, advém simplesmente da motivação intrínseca e da cumplicidade que o trabalho cénico provoca, sempre que bem orientado pelo professor/encenador. O comprometimento nasce do querer fazer bem, é absoluto e não pode ser imposto, mas é reivindicado activamente por todos os participantes. Com isso não quero dizer que o teatro não possa existir no seio da escola; antes pelo contrário! Estou convencido que, sendo devidamente integrado no projecto pedagógico local, a sua prática será mais valiosa como componente de enriquecimento curricular do que como disciplina obrigatória.


Saber fazer

Segundo Gisèle Barret, o professor de teatro (animador, técnico ou encenador) é o “cérebro, coração e corpo do grupo”. Apesar de algum excesso que possa transparecer desta afirmação, é certo dizer que para a orientação de um projecto desta natureza, será absolutamente necessária uma orientação profissional qualificada. Não é admissível que se continue a alimentar no sistema educativo a ideia de que qualquer professor pode assumir as aulas de teatro, baseado somente no fascínio, interesse ou curiosidade.

Embora eu próprio conheça alguns casos de professores (noutras disciplinas, que não o teatro) que também são actores ou encenadores, na verdade estas situações são muito raras e, mesmo nestes casos, qualquer uma das duas profissões ganharia com uma dedicação mais exclusiva…


Com a criação de novas licenciaturas na área da arte-educação, de cursos de especialização artística para os professores, e prática pedagógica para os actores, hoje não existem desculpas para confrontar os alunos com a incompetência e a falta de preparação.

Para além da técnica teatral propriamente dita, e que deverá ser dominada na orientação do projecto teatral, existe também uma pedagogia de aplicação para o teatro na escola, com métodos, recursos e procedimentos adequados. Um professor de teatro deve estar preparado para desempenhar um papel duplo: artista e pedagogo. Longe de ser uma situação contraditória, este binómio revela, na verdade, uma situação de grande complementaridade. A compreensão dos mecanismos de instalação do jogo dramático, além da observação do comportamento cénico e a sua evolução, são valiosos numa disciplina artística cujo objecto de trabalho é tão-somente o ser humano. Diria que o artista alimenta o pedagogo, e vice-versa.


Mitos redutores

O teatro na escola vive cercado ideias preconcebidas, do tipo:

O Teatro torna os jovens melhores alunos;
Os alunos do teatro são os melhores da escola.

Afinal: o que é ser melhor na escola? Já tive alunos com péssimo aproveitamento nas disciplinas escolares, e que eram fantásticos no grupo de teatro. Conheci casos de jovens que, depois de terem começado a fazer teatro na escola, tornaram-se alunos mais rebeldes e indisciplinados. Também tive casos de bons alunos em tudo…e no teatro também. Se ser bom aluno é ser mais participativo, expressivo, crítico, inconformista, estou de acordo. Se é ter melhores notas, não tenho a certeza. É que uma coisa não parece ter a ver com a outra: ser uma pessoa mais equilibrada e feliz não se reflecte necessariamente no aproveitamento quantitativo das avaliações formais.

Outro tipo de afirmação (ainda mais bizarra) é dizer que o teatro é um recurso didáctico, ao serviço do ensino. Escuto isso desde os meus tempos de escola, quando a professora de inglês nos obrigava a fazer a dramatização daqueles textos horríveis, que nós odiávamos. E ainda hoje me deparo com frases do tipo: “o teatro ajuda a dar Gil Vicente”, ou “fazer teatro motiva-os para a leitura”. Esta abordagem, frequente quando falta ao professor um maior conhecimento sobre o real valor do teatro na experiência escolar, reduz à superfluidade todo o potencial educativo desta arte. Seria como dizer que os quadros de Kandinski são muito úteis para ensinar geometria descritiva… Evidentemente, sendo o teatro uma forma de arte pluridisciplinar, ele incentiva também à exploração dos aspectos cognitivos dos seus participantes. A pesquisa dramatúrgica, o debate crítico e a análise sobre os temas que serão abordados no espaço cénico são claros exemplos deste tipo de situações. Quanto ao seu valor como recurso de aprendizagem para os conteúdos formais das disciplinas escolares (como elementos da História e da Literatura, p.ex.), embora tal coisa possa acontecer, trata-se de um factor secundário num processo muito mais rico. A motivação dos alunos envolvidos no projecto teatral, e a conjugação destes conteúdos com outros aspectos do desenvolvimento global, como sejam as formas de comunicação não verbal e o diálogo emocional com os colegas e o público, acaba por canalizar estes conhecimentos formais, que são melhor assimilados (e não só “aprendidos”) pelos alunos. É claro que, sendo resultado de uma experiência total, este tipo de fixação é profundamente orgânica, e torna a informação adquirida mais útil, integral e permanente do que qualquer outro recurso didáctico será capaz de produzir.

Mudar o mundo

Hoje todos parecem concordar que está na qualidade e abrangência do ensino a chave para o desenvolvimento de um país. Face aos elevados investimentos que têm sido realizados para melhorar as condições das escolas, para além da qualificação (e requalificação) de professores, também temos que ter em vista a necessidade de um esforço para tornar os alunos mais preparados, capazes de também assumir um papel activo neste processo, a par dos pais e educadores. A escola não pode continuar a ser uma “quinta de criação” de pessoas, onde a massa principal não é tida nem ouvida. Como figuras principais no contexto educacional, os alunos devem ser estimulados a manifestarem-se, participarem no debate e darem o seu contributo. E isso deve mesmo fazer parte do seu processo de crescimento. A arte, e o teatro em particular, pode contribuir para este feito. Temos insistido na sua capacidade de promover o auto-conhecimento, a auto-estima, de desenvolver as capacidades individuais, de ajudar no crescimento global. Mas a promoção do estatuto dos estudantes pode esbarrar contra barreiras difíceis de transpor.

Segundo Hélène Beauchamp “O teatro é perturbante e obriga aqueles que a ele acedem (actores e espectadores) a questionarem-se.” Esta afirmação leva-me a perguntar, à maneira retórica: será que a escola deseja (ou está preparada) para aceitar o questionamento? Claro que não! Mas é exactamente esta perturbação, quer seja por parte dos alunos/actores ou do seu público, que faz falta e poderá ser encarada como único antídoto para a morte lenta do nosso sistema de ensino. Se o teatro é subversivo, como continua por referir Hélène Beauchamp, terá de ser, por natureza, transformador. É um fenómeno comum a todas as artes: inquietando a alma e aguçando o sentido crítico, estimulando sempre a intervenção e assim conduzir a transformações no meio envolvente.

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