domingo, 20 de abril de 2008

Tertúlia interactiva - "O Actor em jogo"

Em potência, o homem pensa (falando aristotelicamente). Mas é preciso actualizar isso, ou seja, é preciso aprender a pensar, assim como aprendemos a caminhar, como aprendemos a comer, a conduzir; enfim, como aprendemos...




Falemos da acção dramática. Isto parece um absurdo, mas não é; é um absurdo de facto, mas teórico não é. O facto é que alguns actores, não sabem o que é uma acção. Algumas pessoas não sabem o que é acção, só sabem instintivamente, elas vão lá e agem muitas vezes, ou várias vezes, e muitas vezes não agem! Fingem que estão a agir.

O problema fundamental do actor é: como é que eu realizo uma acção crível? Colocando de outra maneira, a grande questão com que nos defrontamos como actores será: porque é que um indivíduo entra em cena, executa uma sequência de acções e acreditamos e outro realiza a mesma sequência e eu não acreditamos?... A diferença não está na aparência, na exteriorioridade da acção. O encenador diz: entra lá, pega um copo com água e sai. O actor entra, pega no copo e sai. Quem vê diz: "eu acredito"; outro entra, faz o mesmo e quem vê diz: "não acredito". Aparentemente ambos fizeram a mesma tarefa e, um público desavisado, talvez acredite nos dois. Provavelmente são enganadores. No teatro contemporâneo o que não falta são bons enganadores. O Actor vai lá, engana e, aliás, (o espectador desavisado) vai achar que este é o melhor. Porque ele sentiu, ele viu que o actor ia beber água porque estava com sede... Alguém que tenha, um olho clínico, diz: não, é mentira. Porquê? Essa é a grande questão, porque se resolvemos a questão, de uma forma de teatro, desde o naturalismo mais exacerbado até ao Kathakali, resolvemos o problema do actor. Pelo menos como compreensão do que é aquela acção. Não digo como realização, porque não sabemos que realizar é outro departamento. Mas para realizar precisamos compreender; partimos desse princípio.

Eu só posso agir se eu estiver “inteiro” ou seja presente num todo, na acção que faço, é óbvio... Afinal, como realizamos uma acção crível? Apesar de nos referirmos a situações muito filosóficas, muito gerais, elas estão todas ligadas a essa questão da acção do actor. Dessa acção que é fictícia mas que não é uma mentira. Eu costumo dizer que confundimos agir com significar; para mim essa é a questão fundamental e entendendo isto, melhoramos bastante o nosso trabalho. Não é que significar não seja uma acção, também é uma acção, só que não é uma acção dramática, não é uma acção teatral. É impossível fazermos alguma coisa que não seja acção. É preciso que distingamos uma acção pura e simples de acção dramática.

No teatro realista isso é mais fácil de entender, até porque é o género teatral com o qual temos mais intimidade. Nós pensamos em termos realistas. O teatro que vemos é quase sempre menos bom, temos uma ou outra coisa onde encontramos acção, mas no geral não tem acção dramática.

Um dos erros que encontramos muito nos actores, hoje, é a ideia de que temos que ser outro, temos que ser o Hamlet. O próprio Jouvet fala um pouco sobre o assunto. O facto é que é impossível que deixemos de ser nós mesmos, a não ser que enlouqueçamos; ainda assim continuaremos a sermos nós - loucos. O que é possível é que eu seja, EU mesmo numa condição diferente da minha condição quotidiana, sou eu numa outra condição. É o que Eugênio Barba chama de extra-quotidiano.
Nós como actores temos que ter um princípio básico que é: não mentir. As pessoas acham que o actor mente; aliás hipócrita, que em grego quer dizer actor, é sinónimo de alguém que finge, que está a fingir; mas o actor não mente, não finge. O que o actor faz é algo muito inusitado, ele vive uma ficção. Como ele faz isso, é o que vamos tentar entender. Ele vive numa condição fictícia na cena. Claro que ele não se torna uma ficção, ele é alguém real e, por isso, ele pode viver uma condição fictícia. Só alguém real pode fazer isso. O Hamlet da peça não é um ser substancial. Stanislavski já apontava isso. Uma actriz acaba por fazer um esforço enorme para acreditar que é Ofélia, e ela não consegue, porque só se ela enlouquecer vai conseguir isso. "Aquela entidade vai baixar nela", isso é um erro que nunca será teatro.

Há outro erro muito comum, e mais comum até do que esse de querer "ser a Ofélia"; é querer "sentir" o que a Ofélia sente... Querer "sentir"!... Muitos acham (e ensinam) que o actor trabalha com os sentimentos. Mas isto não é verdade, é impossível trabalhar directamente com os sentimentos. E muitos acham que Stanislavski dizia isso, que o actor tem que "sentir".

Há uma passagem no livro "A Preparação do Actor" que demonstra isso com uma clareza meridiana, logo no início do livro, quando o director ao fazer um teste com os alunos recém-chegados ao curso. Ele propõe que eles peguem cenas de peças, montem-nas e apresentem-nas para ele. E eles fazem-no. A personagem/narrador Kóstia apresenta uma cena de "Otelo", em que contracenam Otelo e Iago. Na crítica o director diz para Kóstia: "Ficaste o tempo todo mexendo-te, querendo sentir alguma coisa... Vamos fazer o seguinte... " E pede para Kóstia e mais dois alunos se sentarem, dizendo- lhes: "Tu vais sentir alegria, tu vais sentir ódio e tu vais sentir tristeza." Como é que se faz? Como é possível gerar um sentimento por si mesmo?
Kóstia então comenta: "foi então que percebi todo o absurdo, nós percebemos como era absurdo querer sentir alguma coisa directamente.

Isso é importante perceber. Quando estamos aqui todos, nós vemos o absurdo: ficar triste! Porquê? Nós sabemos que eu não podemos decidir no momento: “vou ficar triste”. Até fingir, mas não posso decidir ficar triste, eu posso decidir: eu vou fingir que estou triste. Mas quando nos movimentamos, para proferir ou soltar o texto, achamos que é possível. O que Stanislavski está dizia era isto: “quando nos movemos, quando a estamos no meio da situação cénica, parece que é possível. As emoções não podem ser manipuladas directamente, era isso que o Mestre Stanislavski queria dizer.

Agora vejamos outra situação: saímos de casa tristes, aconteceu alguma coisa na nossa vida, discutimos com um amigo(a), estamos tristes e estamos a sair para o trabalho em cima da hora. Passa o autocarro, e temos que chegar a horas, senão vamos ficar mais tristes ainda, e tu damos uma corrida de cinquenta metros para apanhar o autocarro e conseguimos. Aonde está a tristeza?... Desapareceu! É preciso que o nosso metabolismo volte ao normal para que volte a tristeza, ou seja: eu não posso manipular directamente os meus sentimentos mas eu posso manipular directamente o meu corpo e posso usar à meu belo prazer o meu intelecto, a minha mente, a minha razão. Através disto, eu posso gerar sentimentos (que talvez não sejam exactamente os sentimentos da personagem, não importa). Mas eu posso atingir as minhas emoções via vontade, inteligência, e via corpo. Meyerhold dizia: "Eu vou do corpo para lá, Stanislavski vem de lá para cá, mas o resultado é o mesmo."
O fundamental para entender a questão da acção é que ela tem um sentido. Quantas vezes um actor entra em cena e tu perguntas: o que estás fazer? O que vais fazer? Para onde é que vais?

O actor não sabe e responde: "Não sei... " Como não sabes?

Ele acha que o director é que tem de saber. Quantas vezes um actor entra em cena e diz ao director: E agora, o que eu faço? A resposta correcta é: - "Não sei, eu não sou actor." Tudo bem, você pode sugerir... Enfim... Mas um actor em princípio não pergunta "o que é que eu faço?", ele faz. Aí o director vai dizer: "Não! Não é isso. Eu quero outra coisa, não está bom por isso e por aquilo, vai e repete."

Um dia destes falávamos da crueldade da arte. A arte é cruel, porque é objectiva. Crueldade quer dizer objectividade, é objectiva, não tem "ah, mas hoje eu não estou bom..."

Claro que não somos tão radicais na prática, mas poderíamos ser, sem romper com nenhuma lógica, sem ser incoerente. Um actor age, a palavra quer dizer isso, aquele que age. Não aquele que pergunta, que duvida.

Se o actor não sabe o que é uma acção como é que ele vai resolver esse problema?

Pior ainda, é quando o director também não sabe. E o que ele vai dizer quando entras e perguntas: "O que eu faço?" ele dar-te á um significado, e não uma acção. Ou ele vai dizer, por exemplo: "Nesta hora a personagem está contente."

Para o actor não resolve nada. O que é "estar contente"? Nós vivemos um momento, especialmente sob esse aspecto, muito caótico. Uma das razões dessa ignorância do papel da acção (não a única) é a hegemonia do encenador. Para o encenador não interessa o trabalho do actor. E está certo, pois ele é um encenador, e director de actores. Ele não está interessado no actor, ele está interessado que o actor faça o que ele precisa... Ele não sabe o que é acção enquanto actor, mas enquanto director e, enquanto encenador, sabe muito bem o que quer. Ele sabe que sentido quer dar àquela cena. Para ele existe um sentido. O problema é que o sentido do encenador não serve para o actor. Isso é muito importante entender; porque se ele diz: " tens que estar alegre!", o que o actor tem que fazer é que o estado de espírito vá surgindo na acção, no agir se quisermos ficar alegres, estamos fora do contexto. Então, toda a indicação, quer venha da direcção, do texto, de nós mesmos, venha de onde vier, temos que a transformar em acção, sempre, é a regra. Isto vale para qualquer género e forma teatral. Claro que na linguagem realista, até porque temos mais intimidade com ela, dá para entendermos isso melhor. Mas mesmo no teatro mais abstracto temos que agir.

Todo o grande artista tem que um grande ser observador. As pessoas acham que observar é observar a exterioridade, ver por exemplo um “tique facial”, quando na verdade a observação pega neste "tique" e vai “atrás dele”, vai ver porquê, vai perceba a sua origem. Está a observar alguém... na verdade não está a olhar a exterioridade só, temos que nos aperceber sobre o que está a acontecer por detrás da aparência sensível.

Se você não temos esse “olhar observador” significa que não somos artistas, porque não nos estamos a dirigir numa dimensão simbólica. Você está se movimentando numa dimensão puramente sensível. Tudo é símbolo no universo. Sob esse ponto de vista que estamos a focalizar, tudo é símbolo, e o artista é aquele que consegue ver isso. Ele vê uma árvore, mas ele não vê apenas uma árvore. Ele está a observar outras coisas que estão na árvore.

Walter Benjamin, em um texto denominado "O Narrador", diz que a narrativa sempre traz-nos sempre um conselho - a moral da história. Um conselho, nada mais é que uma sugestão de continuidade para uma narrativa que está a construir-se – a sua própria vida. A questão é, que hoje nós não percebemos a nossa vida como uma narrativa que está a construir-se. Toda a nossa vida é uma narrativa, quer queiramos, quer não. Mas as narrativas hoje não têm começo, meio e fim. A nossa vida se torna uma vida de instantes: “o que eu faço hoje não tem nada a ver com o meu passado nem com o meu futuro, é um instante”. Eu vivo de instantes, e na medida em que isso acontece assim, tudo é possível - é a pós-modernidade, onde tudo vale, porque não há nenhuma coerência na minha vida - então essa narrativa dispersa-se, quase não é uma narrativa. Fragmenta-se. Com o advento da tecnologia isto piorou bastante. Não tenho nada contar o progresso tecnológico em si, mas ele é um instrumento, é preciso que esse instrumento sirva para alguma coisa, porque como ele está sendo usado não serve. A televisão, é a anti-narrativa; primeiro ela não comunica experiência nenhuma, não nos dá conselho nenhum, e em segundo ela não tem coerência, porque nos sentamos à sua frente e ela fragmenta-nos. Mesmo, quando visualizamos um filme da grande qualidade acompanhamo-lo, mas… entra o tempo reservado à publicidade e vai fragmentar-nos uma aprendizagem. Vejam o efeito que isso tem sobre a mentalidade das pessoas. Alguém que fica exposto a esta situação quatro horas por dia, num mês, deixa de pensar e, porque o pensamento subentende exactamente uma coerência, um discurso... A nossa civilização é uma civilização de dispersão.

Há um texto do Jacques Copeau que é um excelente ponto de partida para uma reflexão mais profunda sobre o trabalho do actor. Ele começa a citar uma frase do texto Hamlet, que se encontra na famosa cena dos actores, quando eles chegam e Hamlet percebe que pode usar aqueles actores como ratoeira para denunciar seu tio, o rei vigente, que matou seu pai, Hamlet pede a esses actores para representarem alguma coisa, e eles representam uma cena de um texto romano.

Depois que eles representam e Hamlet fica sozinho ele diz:

Não é monstruoso que esse actor, numa ficção, num sonho de paixão, possa forçar a sua alma a sofrer com o seu próprio pensamento a ponto de empalidecer-lhe a face; lágrimas em seus olhos, o aspecto conturbado, a voz entrecortada, e todos os seus gestos adaptando-se em formas à concepção de seu espírito? E tudo isso por nada! Por Hécuba? Quem é Hécuba para ele ou ele para Hécuba, para que a chore?

(Hamlet, ato II, cena II)

O comentário de Copeau:

"O que é horrível, no actor, não é uma mentira, pois ele não mente. Não é um engodo, pois ele não engana. Não é uma hipocrisia, pois ele aplica a sua monstruosa sinceridade em ser aquilo que ele não é, e não em exprimir o que ele não sente, mas em sentir o imaginário.
"O que perturba o filósofo Hamlet, da mesma forma que as suas outras aparições dos infernos, é, num ser humano, o desvio das faculdades naturais para um uso fantástico."

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Silva Batista

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